sábado, 21 de janeiro de 2012

autoridade

Estou a ler o Art of Fiction - Notes on Craft For Young Writers do John Gardner. No género parece-me bom, talvez o melhor que li. Ciclicamente (3 em 3 anos mais ou menos) faço isto a mim próprio, pego em livros relacionados com "escrita" e digo que vou ser humilde e à 2ª ou 3ª página já estou a abanar a cabeça. Apesar de sóbrio, académico e com uma visão crítica fundamentada (neste falam de Joyce, Dante, Steinbeck, Homero, Hemingway, Lowry ou Becket e não de obscuros autores), não deixa de conter as naturais contradições inerentes a qualquer livro que se proponha a ajudar a criar arte melhor, contradições que o próprio John Gardner reconhece. Por exemplo, John Gardner faz a apologia da Universidade como a melhor incubadora para um grande escritor quando, uma ou duas páginas antes,  reconhece que os escritores costumam detestar o academismo e que as universidades raramente produzem um grande escritor. Também diz que a grande a autoridade do escritor vem de duas coisas(vou traduzir rapidamente): "a sua sanidade humana; isto é, a confiança nele como juiz das coisas, uma estabilidade baseada na soma das complexas qualidades do seu carácter e personalidade (sabedoria, generosidade, compaixão, força ou vontade) a que nós reagimos, como reagimos ao que é melhor nos nossos amigos, com instantâneo reconhecimento e admiração, dizendo, "sim, tens razão, é assim mesmo que é" e "a confiança absoluta nos seus próprios julgamentos estéticos e instintos".

Bom, se a segunda afirmação não me deixa qualquer dúvida, a primeira encerra várias contradições. Não pelos escritores clássicos cuja autoridade se encaixa perfeitamente nestas duas fontes - penso por exemplo em Dostoiévski, de longe o homem com maior autoridade humana que jamais pisou o planeta terra - mas nas excepções, aquelas em que o artista está absolutamente encerrado num universo próprio. Evitando abordar a poesia e os seus frequentes "não tens razão, isso não é nada assim" que me provoca, posso citar o Estrangeiro de Camus. As obras primas Fome, de Knut Hamsum ou toda a trilogia de Becket (Molloy, Malone, Watt) são desprovidas de sabedoria, generosidade, força ou vontade. As personagens de Kafka também nos enclausuram num pesadelo, em que todas, incluindo (e especialmente) o protagonista, agem de forma contra-intuitiva, cobarde, autista e insondável, não existindo da parte do narrador qualquer ajuda, o que contribui para a angústia do leitor. Nestas obras o papel da compaixão, generosidade, força ou vontade é todo deixado ao leitor, se lhe apetecer nutrir tais sentimentos e exibir essas qualidades. Frequentemente, não as tem, e as críticas negativas, prisões, cemitérios e arquivos de censura ficam cheias de Danil Harms, Luiz Pachecos, Gogóis e Jonathan Swifts. Não pretendo exagerar o sentido da afirmação de John Gardner, apenas a levei ao extremo. Pensar assim pode explicar a sua apreciação da obra As Vinhas da Ira de Steinbeck, uma obra que considera medíocre porque é simplista e só mostra um dos lados das coisas e não lhe arrancou nenhum "tens razão, é mesmo assim".


Num apontamento à parte, no outro dia explicava a alguém porque considero o humorista Bruno Nogueira incomparavelmente superior a Ricardo Araújo Pereira e o argumento que usei foi precisamente este. No primeiro, reconheço a autoridade do talento, do universo estético próprio e de nos mostrar "tens razão, não é nada assim que as coisas são" (basta pensar no enorme desafio que nos foi colocado pela reavaliação humorística de pessoas que nos habituamos a desprezar como o Roberto Leal, o Marco ou a Luciana Abreu). Ao segundo, reconheço um profissional talentoso que se leva a sério e de vez em quando resvala para as oportunidades de arrancar "tens razão, é assim mesmo que é", mesmo que o exercício não constitua qualquer desafio artístico (ironizar sobre um cartaz do PNR, desconstruir Marcelo Rebelo de Sousa no referendo do aborto, satirizar Santana Lopes etc.)

2 comentários:

Lia Ferreira disse...

há é todo um João Quadros por trás do Bruno Nogueira (salvo seja)
bj

Anónimo disse...

Sim, há um quadros, é verdade.
E estás a esquecer todo o melhor trabalho do RAP - foi ele o primeiro a fazer a "reavaliação humorística" de Marco com o seu famoso "falam, falam, falam e não fazem nada"... todos os exemplos que usas para RAP são o seu trabalho menor - não me parece uma comparação justa quando todos os exemplos para BN são o seu trabalho maior.